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sexta-feira, janeiro 02, 2009

Para refletir.... Magnífico!

...Tanto nossa alma como nosso corpo são compostos de elementos que já existiam na linhagem dos antepassados. O "novo" na alma individual é uma recombinação, variável ao infinito, de componentes extremamentes antigos. Nosso corpo e nossa alma têm um caráter eminentemente histórico e não encontram no "realmente-novo-que-acaba-de-aparecer" lugar conveniente, isto é, os traços ancestrais só se encontram parcialmente realizados. Estamos longe de ter liquidado a Idade Média, a Antiguidade, o primitivismo e de ter respondido às exigências de nossa psiquê a respeito deles. Entrementes, somos lançados num jato de progresso que nos empurra para o futuro, com uma violência tanto mais selvagem quanto mais nos arranca de nossas raízes. Entretanto, se o antigo irrompe, é frequentemente anulado e é impossível deter o movimento para a frente.

Mas é precisamente a perda da relação com o passado, a perda das raízes, que cria um tal "mal-estar na civilização", a pressa que nos faz viver mais no futuro, com suas promessas quiméricas de idade de ouro, do que no presente, que o futuro da evolução histórica ainda não atingiu. Precipitamo-nos desenfreadamente para o novo, impelidos por um sentimento crescente de mal-estar, de descontentamento, de agitação. Não vivemos mais do que possuímos, porém de promessas. Não vemos mais a luz do dia presente, porém perscrutamos a sombra do futuro, esperando a verdadeira alvorada. Não queremos compreender que o melhor é sempre compensado pelo pior. A esperança de uma liberdade maior é anulada pela escravidão do Estado, sem falar dos terríveis perigos aos quais nos expõem as brilhantes descobertas da ciência.

Quanto menos compreendemos o que nossos pais e avós procuraram, tanto menos compreendemos à nós mesmos e contribuímos com todas as nossas forças para arrancar o indivíduo de seus instintos e de suas raízes: tranformando em partícula da massa obedecendo somente ao que Nietzche chamava o espírito da gravidade.

É evidente que as reformas orientadas para a frente, isto é, por novos métodos ou gadgets. trazem melhorias imediatas, mas logo se tornam problemáticas e ainda por cima custam muito caro. Não aumentam em nada o bem-estar, o contentamento, a felicidade em seu conjunto. Na maioria das vezes são suavizações passageiras da existência, como por exemplo, os processos de economizar tempo que infelizmente só lhe precipita o ritmo, deixando-nos, assim, cada vez, menos tempo "Omnis festinatio ex parte diaboli est" (toda pressa vem do Diabo), costumavam dizer os antigos mestres.

As reformas que levam em conta as experiências do passado são em geral menos custosas e, por outro lado duráveis, pois retornam aos caminhos simples e mais experimentados de outrora, e só fazem um uso moderado dos jornais, do rádio, da televisão e de todas as inovações feitas no sentido de se ganhar tempo.

Falo muito neste livro de minhas concepções subjetivas que não representam, entretanto, argúcias da razão, são muito mais visões que surgem quando os olhos semicerrados e os ouvidos amortecidos, procuram ver e ouvir as formas e a voz do ser. Se vemos e ouvimos com demasiada nitidez limitamo-nos à hora e ao minuto de hoje e não observamos, se e como, as nossas almas ancestrais percebem e compreendem o hoje em outros termos, e como o inconsciente reage. Dessa forma, continuamos ignaros e não sabemos se o mundo ancestral participa de nossa vida com prazer primitivo, ou se, pelo contrário, volta as costas com desgosto. Nossa calma e satisfação íntima dependem, em grande parte, do fato de saber se a família que o indivíduo personifica, está ou não de acordo com as condições efêmeras de nosso presente.

Na minha torre em Bollingen, vive-se como há séculos. Ela durará mais do que eu; sua situação e seu estilo evocam tempos que há muito já passaram. Lá poucas coisas lembram o presente.

Se um homem do século XVI entrasse na casa, somente o lampião de querosene e os fósforos seriam novidade para ele; com o resto ele não teria dificuldade. Nada, nela, perturbaria os mortos: nem luz elétrica, nem telefone. As almas de meus ancestrais são mantidas pela atmosfera espiritual da casa, pois respondo, bem ou mal, às questões que suas vidas deixaram em suspenso; desenhadas nas paredes. É como se uma grande família silenciosa, ao longo dos séculos, povoasse a casa. Lá, vivo meu personagem número dois e vejo amplamente a vida que se cumpre e desaparece."


Carl Gustav Jung - Mémorias, Sonhos e Reflexões - Editora Nova Fronteira

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